Tainã Bispo
2 min readMay 12, 2020

Quando Nicole Aun e Leticia Balducci Borges decidiram gravar o podcast do Atreva-se, o mundo era bem diferente. O covid-19 ainda não era uma realidade, mas isso não quer dizer que a realidade já não se impunha como força bruta e covarde para muitos (ou será que não seria para a maioria?).
Naquele longínquo início de 2019, elas gravaram 35 entrevistas que deslocam nosso olhar para outros territórios, sons, cores e texturas. Íntimas, políticas, afetuosas ou aguerridas, são conversas que revelam o que é ser mulher e, também, o que é ser mulher questionando a própria concepção de mulher. Como não performar as ideias pré-concebidas de mulher numa sociedade patriarcal? Como escapar? Como não sucumbir?
No momento em que estamos prestes a encerrar a primeira temporada do nosso podcast, o covid-19 já está nos móveis das casas, nas ruas, nas prateleiras dos supermercados e nos milhares de cadáveres ao redor do mundo. Sendo que uma tragédia particular e verde-amarela se arrasta no nosso país. (Perderemos milhares de vidas para a necropolítica de um governo estúpido e, provavelmente, o pouco que nos resta de uma democracia capenga).
O covid-19 parou as fábricas, desligou os carros, esvaziou as ruas. Podemos, até, estar mais silenciosos e introspectivos. Mas o mundo continua igual. Os mesmos corpos continuam à venda pelo mundo, sendo oferecidos como recompensa para que o tal do mercado volte a funcionar e o tal do dinheiro a se multiplicar.
As mulheres, trancadas em casas com seus agressores. As crianças, fechadas em casa com seus abusadores. As empregadas — quase todas pretas — cuidando da casa dos brancos. Os indígenas, sozinhos, sendo atacados em seus territórios. A Amazônia arde como nunca.
No podcast da historiadora Aracele Torres, ela cita uma frase de Virginia Woolf: “O futuro é a escuridão e isso é a melhor coisa que o futuro pode ser, creio eu.” Sim, é na escuridão que temos a chance de construir alguma outra coisa. De sonhar com um lugar onde corpos — sejam eles quais forem — tenham espaço para ser e existir como quiserem para além de números, códigos de barras e empregos precarizados.

Tainã Bispo

Jornalista, ghost writer e editora de livros. Fundadora da Editora Claraboia